segunda-feira, 8 de setembro de 2014

A lista da VEJA e a máquina de moer gente

A lista da VEJA e a máquina de moer gente


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Por Roberto Tardelli - Justificando


Sempre que me deparo com listas, fico ressabiado. Uma lista é sempre um elenco, é sempre uma forma de se tirar pessoas do mundo comum, da realidade média, da mediocridade nossa de cada dia. Faz mais de trinta anos, em um estranho período Pré-cenozóico em que não existia celular, que li meu nome na lista de aprovados naquele concurso de ingresso no Ministério Público de São Paulo. Foi tão marcante que me lembro da cena – fotografada eternamente na memória – em detalhes milimétricos e de cada pessoa que me circundava naquele momento.
Na ditadura militar, listas e mais listas de comunistas subversivos eram feitas e entregues aos arautos do poder; bastava que o nome estivesse na lista para que um pequeno inferno de negações de cidadania se iniciasse na vida de brasileiros comuns, muitos sem nenhuma possibilidade de envolvimento com grupos de luta armada, porque simplesmente levavam suas vidas normais, como pessoas normais e que, sabe-se lá por que razão, com o nome posto em uma lista de inimigos do regime.
A lição das listas ficou. Durante décadas, em qualquer casa de contraventor ou em qualquer ponto de tráfico passou a ser comum que listas houvessem a se espalhar com nomes perturbadores, de gente sabidamente ilibada, com o intuito de criarem-se perplexidades investigatórias ou medos de que fossem incomodadas pessoas tão poderosas que estivessem além dos limites humanos da investigação criminal.
Listas de criminosos não se constituem novidade, listas feitas por ex-cúmplices menos ainda. A novidade é o vazamento dessas listas em revistas de circulação nacional, sem que dela se saiba coisa alguma, até mesmo se existe, se pode ter sua autoria efetivamente creditada a seu indigitado autor, sem que se saiba quem era quem.
Esta semana, VEJA trouxe mais um lista, a de fraudadores da Petrobras, a partir de umadelação premiada de um de seus diretores presos. Apenas o de sempre: uns  nomes eternamente sob suspeição nacional, para que todos possamos ter a sensação do eu sabia…, se somam a outros nomes, fortes e que dão ao (novo) escândalo uma conotação de uma tragédia político-ética em que todos estão envolvidos e que não há mais saída, a não ser a de começar de novo, seja lá o que devamos entender por isso.
Uma lista que envolve promiscuamente mortos e vivos, sem que nada rigorosamente a sustente a não ser o elenco que anuncia e que não pode ter nenhum significado.
delação premiada é uma maneira de – ética às favas – romper a cadeia de colaboração recíproca de uma organização criminosa, oferecendo-se a um de seus integrantes uma possibilidade de diminuição de pena, que pode chegar ao perdão judicial e à extinção de punibilidade àquele que colaborar com o Ministério Público.
A pressão do cárcere, os dias de privação de liberdade, a sensação de ter sido abandonado pelos antigos companheiros, a ausência dos entes queridos e principalmente o terror a passar anos de sua vida preso, tudo isso somado, forma-se um caldo de cultura de autopreservação a deduragem que a lei buscou disciplinar.
A Lei nº 12.850/2013 regula o que eufemisticamente chama de réu colaborador e oferece um pudim penal àquele que desnudar por completo a organização criminosa: desde apontando seus demais integrantes, até detalhando seu funcionamento e a divisão de tarefas, concretizando a recuperação parcial ou total do proveito econômico, a prevenção das infrações penais decorrentes da atividade da organização criminosa e eventual localização de vítima, quando houver.
Para que ela exista processualmente, vencidos os quesitos elementares, existe toda uma engenharia jurídica obrigatória para que esse estranho edifício do dedurismo institucionalizado se erga e ganhe um endereço legal.
A primeira viga necessária é que a delação premiada exige a presença de um advogado, que participará de toda a negociação, que terá como resultado final um depoimento consensual, dele participando advogado, polícia judiciária, através do delegado de polícia, e o Ministério Público. Esse depoimento consensual deverá ser levado à homologação judicial, podendo o juiz, inclusive, ouvir reservadamente o colaborador, na presença de seu advogado.
Não é só. Somos todos adultos ou deveríamos ser e tudo isso será sigiloso, até o recebimento da denúncia a ser ofertada, caso não se opte pela manutenção desse sigilo, até para preservação de quem colaborou.
A delação premiada é um complexo procedimento pré-processual, e, mesmo que obedecidas todas as suas precauções, corretamente a lei ressalva que nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações do agente colaborador. Sim, essa pequena vacina está no art. 4º, § 16, da Lei.
É curioso, no mínimo, que uma lista de integrantes de uma organização tenha sido divulgada, sem que se tenha um mínimo conhecimento de que cautelas foram adotadas.
É uma forma de se ligar uma máquina perversa de moer gente, moer almas, moer verdades, moer o mínimo de seriedade que se espera de uma ação de envergadura penal. Isso significaria adotar como verdade absoluta a versão unilateral de uma pessoa aturdida pela prisão, desesperada diante do medo de permanecer preso e que viu uma luz no túnel das patifarias, que é a delação premiada. Significaria, ainda, adotar-se como verdade incontrastável o que apenas um dos investigados afirmou, a implicar o desmonte de tudo o que a Constituição garante a qualquer ser humano em território nacional, o contraditório e a presunção de inocência.
Não houve nenhum foco processual-penal de seriedade, a ver-se pelo fato de ter envolvido quem morreu tragicamente e que jamais poderia ser alcançado pela ação penal porque, à evidência, teria extinta a punibilidade, não havendo razão alguma para constar em uma lista de estrita finalidade preparatória de uma denúncia, no sentido estrito do termo.
A divulgação, pois, foi sórdida e impressiona que tenha causado tanto rebuliço, notadamente porque marca o baixo nível ético de nossas disputas eleitorais e realça nosso talento, cada vez mais desenvolvido, para o achincalhe moral, para o justiçamento, travestido por ignóbeis de justiça.
Mas que Justiça não é, não foi e não será.
Roberto Tardelli é Procurador de Justiça no Estado de São Paulo.

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